Cartas da pandemia

Mensagens sem remetente ou destinatários específicos; mapas da pandemia formados por impressões, pensamentos, desejos de compartilhar uma palavra ou uma imagem. Experiências poéticas, políticas, sensíveis inspiradas na reorganização da vida imposta pelo novo coronavírus. Todos estão convidados para essa composição coletiva, sem autoria identificada.


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5 de dezembro de 2020

Sempre pensei que fosse morrer

De dengue, febre amarela, chicungunha
bala perdida
assalto, polícia
aids
democracia
sedentarismo 
achei que morreria por sonhar
por lutar ou, 
tendo vencido,
por velhice
teve momentos em que morrer
seria sorte
ignorância
bênção
e encontrar o além era
esperança
indiferença
tuberculose, canibalismo, chibata
eu tinha tudo para morrer de raiva
estresse esgotamento 
piripaque
dizia minha avó 
que não está mais entre nós
por desilusão com a vida
achei que a sinceridade me mataria
o tédio, a fome
a precariedade
que só se vê de longe, veja bem
morreria de amor
assassinado, quem diria
e teria valido a pena
senão pularia do viaduto
do chá envenenado
por tristeza
por quem se foi
gritaria até perder o fôlego
adeus!
e me iria em boa hora
nem um minuto a mais
nunca a UTI
o coma induzido
emagrecer e falecer
irreconhecível
como se um outro morresse no meu lugar
queria o acidente
heroísmo
uma legenda favorável, enfim
jaz aqui:
eu, no caso
e diga-se de passagem
nunca pensei nisso a sério
ao contrário do que fiz parecer
não planejei, não
era jovem e
descobri com certo espanto
injustificado, é verdade
a morte leva mesmo
a boa gente,
a boa alma
não faz distinção
quebra o vaso
tira o ar de quem parte
o chão de quem fica
onde?
como foi?
uma tragédia
não se sabe direito
um espirro
embalagem contaminada aperto de mão gole de copo botão de elevador excesso de confiança
a brisa de fim de tarde
noite adentro
eterna.

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3 de dezembro de 2020

Criatividade embotada

Possivelmente assim como você, estou em casa com esposa e filha desde o início de março, onde vida familiar e profissional nunca estiveram tão misturadas, indiscerníveis até. É sem dúvida um privilégio se comparado a quem precisa sair, expondo a própria saúde e a de seus próximos. Há também outros aspectos positivos. Por exemplo, acompanho cada momento desse terceiro ano de minha menina. Fico a imaginar quanto teria perdido se continuássemos na rotina anterior, em que ela passava dez horas por dia na escola. Os pontos negativos, claro, são inúmeros, nem caberia elencá-los aqui. Todavia, um deles me chamou a atenção recentemente, e pude discuti-lo com amigos escritores e artistas que vivem situação semelhante à minha, quando concluí que existe mesmo uma constante: ao longo da quarentena, o contato com aquele pulso mais criativo, tão típico do ser humano, foi sendo minado até quase desaparecer. Aconteceu devagar, um pouquinho por semana, de modo que não consigo identificar um ponto exato de ruptura, apesar de ser assim que me sinto agora, apartado dele por completo.

De início, tentei elaborar a nova condição imposta pelo vírus, e como os tempos mais alargados já não cabiam, optei por trabalhar com poemas breves. Havia neles o engenho da palavra e, mais importante, uma reapresentação da vida, perturbada com as mudanças que eu observava ao redor. Tais poemas foram escasseando. Não porque me faltavam palavras, mas porque faltava vida.

Pode soar paradoxal, em especial se levarmos em conta que certa inércia das primeiras semanas foi logo preenchida com mais e mais trabalho, ao ponto em que jamais produzi tanto, profissionalmente falando, como neste último mês de novembro. As horas estiveram todas ocupadas, como se não houvesse sequer alguns minutos de respiro. Porém tais realizações não foram além de um modelo automático, dedicado a quem contrata meus serviços de redação. Talvez você se pergunte: é possível escrever sem criatividade? Sim e não, eu diria. Neste caso, basta um apuro técnico com as palavras, como se eu escrevesse com um jogo de peças de montar. O que não é suficiente para escrever literatura, não basta para desenvolver ensaios críticos, coisas que muito me interessam. Talvez você sinta o mesmo em relação à sua área de atuação e seus interesses particulares.

E por que não basta? Porque falta vida. Foi assim que me dei conta de como eram importantes as quase duas horas por dia no transporte público, o horário preservado para o almoço, as pausas para o café. Tanto quanto os passeios de fim de semana no parque, nos centros de cultura, em restaurantes e até mesmo no comércio. O encontro com conhecidos e desconhecidos. Como bem disse uma amiga, visitar uma exposição no museu é muito mais do que estar frente a frente com obras de arte. Vemos pessoas ali e nos percursos de ida e volta, ouvimos uma música, somos atravessados por trechos de conversas, sustos e deleites. O corpo se põe em movimento, sentimos os cheiros da rua, somos tocados pelo sol e pelas sombras. Carros pedem passagem, pássaros nos dão cantadas, desviamos olhares e trajetórias. Reagimos de improviso o tempo inteiro. Estamos abertos ao espontâneo.

É a essa vida que eu me referia, acusando a sua falta. É dela que advém a intensidade criativa capaz de se converter em poesia. É da natureza desse dia a dia social e político se apresentar como uma verdadeira experiência estética a quem se permite. O fato de não poder mais vivenciá-lo leva a um automatismo psíquico e, com certeza, a um comportamento produtivo, porém sem vitalidade. No limite, sinto-me como que morto; um morto-vivo, digamos.

Aquela dificuldade de separar minimamente o pessoal e o profissional tem provocado sentimentos controversos, como a alegria de estar junto de quem amo e a culpa por não realizar algo prazeroso, como pesquisar, por exemplo. Se algum tempo se abre na rotina de trabalho obrigatório, não consigo pegar um livro e apreciá-lo, sabendo que minha filha espera companhia para brincar. Quero estar com ela o máximo possível, ao mesmo tempo em que me pego torcendo pela sua hora de soneca. Quando saio em fins de semana para fazer algum exercício, pedalando, penso que devo retornar o quanto antes.

Claro que a força criativa às vezes encontra falhas no casco e vaza. Acontece de eu despertar de madrugada para escrever alguma coisa que me convoca. Comecei também a fazer pães, de maneira que não me sinto tão culpado com o tempo que demandam, pois todos na casa usufruímos deles. Encontro aí alguma energia para manter o pulso. Mas sinto que mesmo essas atividades começam a vestir o uniforme fabril.

Dizem que 2020 ficará marcado como o ano da doença, enquanto 2021 será o ano da cura. Sem dúvida são narrativas factíveis, ainda que leve um bom tempo até sermos vacinados, ao que tudo indica. Outra amiga manifestou a necessidade de um rito de passagem, como o próprio réveillon, que simboliza o encerramento de um ciclo e o início de outro. De minha parte, sinto que ele não terá esse poder; ainda teremos muito 2020 no ano que vem.

“Vai dar certo no final”, seja lá o que isso signifique, assim como a ideia de um “novo normal” em que a sociedade será mais compreensiva e solidária são visões generalistas, ou seja, não servem para muita coisa, exceto nos ludibriar. Infelizmente, não estou em condições de ir muito além na elaboração de futuros possíveis.

Não quero, contudo, parecer pessimista. Sigo o ritmo que me cabe agora, tentando de uma maneira ou de outra um descompasso, um desvio, um tropeção, que seja. Que me permita cair no mundo outra vez e me conectar com a vitalidade criativa de maneira mais intensa do que a favorecida pela fibra ótica. Se posso desejar algo neste fim de ano é que eu consiga reinventá-lo pela arte. A qual, tenho certeza, me aguarda tão ávida quanto aguardo por ela.

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17 de setembro de 2020
 
Historinha para despertar

Nesta madrugada leio uma historinha
de C. Drummond de Andrade –
sempre ele! – e digo historinha apenas
porque é como ele a chamou.
Pensando bem é sempre uma
– não simplesmente pequena, isso é o de menos –
historinha porque singela como uma flor
e sólida como o asfalto.
Fazia anos que eu não recorria ao Drummond
mas o atual sentimento do mundo
me faz querer aconchegar os olhos
numa historinha assim sutil e
de tamanha potência que me arranca o sono
por um bom motivo, enfim.
Ela conta de uma reunião muito importante
de executivos do mais alto escalão
com graves assuntos a deliberar
um encontro que não pode ser interrompido por nada
nem ninguém
mas é
caso contrário não haveria história
digna de ser contada
batem à porta
anunciam uma senhorinha
– é como a imagino, miúda –
que sem graça pede licença
pede perdão por interromper tão ilustre conselho
mas acontece que
seu canarinho
– que tem ele?
morreu
– e daí?
ela solicita, encarecidamente
caso os senhores não se importem
se não for abusar do valioso tempo
para enterrá-lo no lindo jardim do terraço
pois apesar de pertencer a uma grande firma
é pequeno o suficiente
para abrigar um canarinho
em seu último sono.
O parque municipal
mesmo a praça da esquina
seria demais
e para surpresa geral
– inclusive a minha –
os sérios executivos concordam
concedem tal licença e permissão
até mesmo interrompem sua análise especialíssima
de uma questão profunda
para o cortejo fúnebre
e o sepultamento da ave
em sua cova de sete colheres de terra.
Era uma graça, pousava no dedo.
Muito lindo, como eu me recordava do Drummond
tão simples e delicado e ainda assim
tão Drummond
esse monstro de óculos
apoiados em nariz estreito
e paletó maior que o corpo
a ponto de quase desabarem.
Acontece que
perdi o sono
não para a senhorinha ou
para os executivos,
foi para o empregado responsável
pela maior das mínimas revoluções
aquele que bateu à porta
contrariando ordens expressas e assim
perturbou tantas outras implícitas
aquele que ousou desobedecer
– servidor antigo, conceituado –
e talvez sem querer
fez despertar alguma poesia
do momento qualquer
a ínfima e infinita poesia
à qual Drummond chamou historinha
por completa intimidade,
por certeza do que basta e
do que não encontra limite.
 
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8 de setembro de 2020



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17 de agosto de 2020
Falar de poesia é fácil.
Difícil é falar da morte que se espreita
a cada gesto, que se impregna em certas peles.
Difícil é falar da morte e do choro das mães que
se segue. Doer os dentes de tanta ansiedade.
Fácil é cumprir com a promessa de não ser.
Difícil é redescobrir o milagre secreto que o homem
argentino me revelou. Muitas noites cheguei a sonhar
com a face do homem, me trazendo susto e espanto,
moldando a substância abstrata do espaço-tempo.
Repito o que ele disse depois de Yeats:
Estou à procura da face que tinha antes do mundo
ser feito. Estou à procura do mundo que eu tinha
antes da face ser feita. Anterior ao derrame do sangue
preto, à fome, à miséria imposta, à violência dos corpos,
anterior à concepção de beleza, às artes que apodrecem.
Anterior ao meu próprio feito de ser um corpo e corporificar
uma ancestralidade maior que ele mesmo, de ser símbolo
e coisa, carne e éter, vida e medo.

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14 de agosto de 2020



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13 de agosto de 2020

Três conchas cinza

Talvez você se pergunte o que significam estes longos períodos de silêncio entre um escrito e outro. Desde a chegada da pandemia ao Brasil, quase não toquei no caderno de memórias que pretendo lhe entregar no futuro, quando você for adulta. Claro que muito tem acontecido, mesmo se a história lhe disser que o mundo parou. Não parou sequer quando deveria ter parado. Estamos confinados numa correria impensável, sobrevivendo precariamente entre o trabalho remoto, o ensino à distância e todas as atividades mal realizadas que só produzem frustração. Nossa situação é privilegiada. A falência geral sangra mais onde não vemos. Há pessoas fragilizadas, vulneráveis, obrigadas a se arriscarem para sustentar o nosso isolamento social. Elas habitam os silêncios entre um relato e outro da história. Se puder, tente ouvir seus sussurros nas conchas que guardei na prateleira da biblioteca, elas falam da fenda entre o que chamamos de sociedade e o que ela de fato é. Por ora, só posso dizer de minha perspectiva parcial e insuficiente, como são todas.

Recolhi da praia três conchas cinza bastante semelhantes, exceto pelo tamanho. Uma maior, outra média, outra pequena. Guardei-as como lembranças de nossa estada no litoral durante alguns dias da pandemia, onde você enfim pôde correr pela areia e tomar sol, após três ou quatro meses isolada em um apartamento. Você não cabia em si; eu e sua mãe ficamos aliviados. Peguei as conchas intuindo que de alguma maneira elas se pareciam conosco. Só agora me pergunto por que, exatamente. A vida que as habitava já não está. Qual teria sido o seu destino? O que significam conchas vazias na areia, trazidas pelas ondas, neste contexto atual? Como é viver numa concha, encontrar segurança apenas no interior daquela estrutura rígida? Ser levada para um lado e para o outro, a dança conduzida pelo mar?

Em casa, folheio poemas escritos pelo chinês Ai Qing na época de sua viagem à América do Sul, em 1954, por ocasião do aniversário de cinquenta anos do amigo Pablo Neruda. A última fotografia reproduzida no livro mostra o poeta agachado na areia, recolhendo o que parecem ser conchas. A mão direita, mais baixa, tenta agarrar uma delas. Na esquerda estão as já escolhidas, posso ouvi-las tilintarem, quase caindo entre os vãos de seus dedos. Os cabelos estão revoltos pelo vento que sopra do Pacífico, o mesmo oceano que contorna sua terra natal. As mangas e pernas de seu terno escuro estão esbranquiçadas pela areia fina do litoral chileno, talvez de Viña del Mar ou El Quisco, conforme a legenda da imagem.

Sabe-se que Ai Qing recebeu com muito carinho a coleção de conchas com que “el capitán” o presenteou e que o encantou pela diversidade de cores e formatos, guardadas como relíquias de uma experiência de liberdade, trocas culturais, inspiração para um ideal de sociedade sempre porvir. Pouco depois de retornar à China, o poeta foi preso pela repressão e condenado a um confinamento de vinte e um anos, que lhe retirou todos os direitos civis e políticos.

Tive o prazer de visitar a casa-museu de Neruda em Valparaíso, apelidada de La Sebastiana, toda decorada com os mesmos motivos náuticos que se encontram nas suas demais residências. Da sua cabine de comando se vê o Pacífico, cujo nome se dilui num horizonte infinito. Diz o longo poema que Ai Qing dedicou ao anfitrião, intitulado Sobre um promontório no Chile: “O dono da casa é / amigo de Lorca, o poeta assassinado / testemunha do martírio da Espanha / diplomata aposentado e / não almirante”. Mais adiante, lemos: “Alguém se levanta e / com uma lupa / busca lugares no mapa-múndi / onde ainda não botou os pés / O mundo em que vivemos / parece-nos tão imenso / mas é de fato pequeno / Num mundo como este / a vida deveria ser melhor”.

Enquanto sobrevoava outro oceano, vindo da Europa e da África e antes ainda de chegar a Recife, Ai Qing escreveu também um longo poema de evidente caráter anti-imperialista, olhando para baixo pela janela do avião. Chama-se Atlântico, do qual recorto uns versos: “Vida é preciosidade sem preço, / Mas, na opinião dos vendedores da guerra, / Vida é insignificante, / Na balança deles, / Para equilibrar com contrapeso, / É preciso um caderno / De mil páginas cheias de nomes de pessoas.”

Será que, ao vasculhar a areia na praia chilena, Ai Qing sonhava com a revolução comunista, que pretendeu criar um país igualitário? Sua poesia viajante, seu olhar estrangeiro voltado à nossa América do Sul.

Neruda escrevia sempre com caneta-tinteiro e uma tinta verde-mar. Já tive um vidro dessa tinta, mas não consigo desaguar no papel sequer uma amostra da sua imensidão poética.

Caminho pela praia do litoral norte de São Paulo, recolho três conchas cinza, olho para as águas que são outras e são as mesmas de Neruda e Ai Qing, separadas por mera convenção. Afundo meus pés na areia sem poder distinguir o que nela são fragmentos de conchas antigas, há muito desbastadas, e o que não é.

Enquanto isso você olha para cima. São andorinhas.

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10 de agosto de 2020
 
 
Mascarar verdades, mascar inverdades
 
Há máscaras e máscaras. 
Algumas protegem, 
algumas disfarçam,
outras escondem,
abafam
ou ainda, sufocam. 
Poucas caem...
 
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7 de agosto de 2020

Assumo a derrota

Abandono os planos no papel
rasgo sonhos ao meio
atiro os fragmentos pela janela
e fico a ver navios
partirem rumo ao destino
que pensava ser o meu

É preciso assumir
a precariedade que se instalou
a distância impossível no horizonte
que meus olhos um dia tentaram alcançar

Não é a idade
a saúde financeira
o desgaste das relações
é mesmo uma percepção 
da vida submetida a instâncias superiores
crueldade e perversão sociais
quase uma iluminação profana
de que não haverá amanhã
nem motivo para tentá-lo
outra vez, por teimosia

Assumir a derrota agora
me chega como um alento
no final, quem diria
uma realização,
espécie de vitória
vazia.

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5 de agosto de 2020


Baile de máscaras

Mascarada, você
não esconde sua condenação
atrás da tela se refugia
onde tudo se mostra e nada se vê
onde tudo se lê e nada é dito
nesse jogo de ocultação de cadáveres
desaparecemos à vista de todos

Cadê
esse eu por trás da máscara
não mais que uma sombra
diante da iluminação artificial, um
eu que não pode existir
senão remotamente
no mundo das imagens

Ledo engano!
nem mesmo ali posso ser
quando não há você
aqui, não há mais
ninguém.

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31 de julho de 2020

eu resto naquilo que o tempo provoca
mas cede e não volta
invoca novos vértices
restabelece o anonimato 
dos dias 
da semana

hoje sou o que entende a parede 
branca
que me reflete e insinua
como uma semente a encapsular
algo que pulsa o ainda
não o verbo

é preciso o aterramento
o sótão existe pelo porão
a pele insiste pelo desejo
e o sol
lâmpada de led
do entardecer
protagoniza 
o restar

molha a pele com a seca 
que vereia
e brinca o vácuo
na distração da dor

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27 de julho de 2020

Anticorpo

Fechado
num esforço coletivo
insuficiente, paliativo
sem tocar nem ser
tocado, sem poder
tocar ou fazer
proibido
pela própria consciência
de um comum
possível
sem sorriso, só smile
sem encontro sem reflexo
de mim sobreposto ao outro
a fantasmática do corpo
– ou o seu contrário?
cadáver ainda vivo
apenas
mais um e
nada mais.

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13 de julho de 2020



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5 de julho de 2020


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26 de junho de 2020

Derrocada

Eis que a árvore cede
arrancada de suas raízes
tomba na direção do muro
apoia nele seu derradeiro peso
escora num único abraço
sua ordem arruinada de tijolos e cimento,
a qual cederá
assim que a árvore for retirada.

É uma conjunção perdida
mantida por aparelhos enquanto
insistimos na preservação daquilo
que foi e não tornará a ser.

Há esperança, contudo
já não há árvore nem muro.

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22 de junho de 2020



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11 de junho de 2020


Mistérios se encontram

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10 de junho de 2020

Confirmação

Será que já tive o vírus em minhas mãos,
recolhido num botão de elevador
numa troca de máscaras
numa embalagem qualquer,
a pele contaminada
salva da infecção pela derradeira
água com sabão?

Cada tosse, cada arrepio
que antes passariam despercebidos
agora vêm acompanhados desse fantasma
ameaça próxima
como a violência doméstica
que disparou desde o início da pandemia
pela simples oportunidade que se criou para os monstros
demonstrarem quem são
sem que quase ninguém os veja porque se escondem
diante da ameaça do olhar
fantasmas
próximos como o carroceiro que vi dia desses
mascarado, coletando o desprezo dos outros
veio até a rua de minha casa, depois retornou
a uma rua onde jamais estive, a sua
comunidade fantasma, vizinha invisível
nesta mesma cidade assombrada
pelos demônios da desigualdade
perto
como este entregador a me trazer o mundo
a quem recebo com medo
de que carregue mais do que
o meu pedido,
com quem mal troco palavras
antes que retome o seu trabalho
ele não pode parar
para que os privilegiados parem
protejam-se, sintam-se ameaçados no sofá
morrendo de preguiça
de limpar a própria sujeira ou
de preencher quantos quilos ganharam
no seu diário da quarentena feliz, de colorir
debaixo das cobertas, ao som de lives
nestas condições
ter o vírus nas mãos me parece tão secundário
mesquinho, como se eu tivesse vivido sempre
vítima de mim mesmo
em perpétuo isolamento social.

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9 de junho de 2020
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8 de junho de 2020

Pele

Mario é um senhor de 74 anos. Não usa o telefone para conversar, somente para praticidades. Não é adepto às tecnologias, chamada de vídeo, web encontros. Mesmo antes da quarentena, não saía muito para a rua, somente para comprar cigarros, ou seus remédios mensais. O contato que tinha com as pessoas era quando iam visitá-lo, principalmente nos almoços de domingo.

Agora, durante a quarentena, mata um pouco as saudades quando suas filhas estão em chamada de vídeo e o chamam para mostrar o seu netinho Davi, de quase um ano. Davi é uma criança fofa, de riso fácil, que está começando a soltar algumas palavras. Geralmente responde com sorrisos às falas das pessoas na tela. Reconhece o rosto do avô. Mário nunca foi uma pessoa afetiva no plano físico, do toque, do abraço. Ele fica feliz ao ver o neto e sorri de volta. Semana passada, em uma dessas chamadas de vídeo com o Davi, entre um sorriso e outro, Mário quis fazer um carinho no neto. Tocou na tela, na imagem do rosto da criança. Mas ela não era morna, não era macia, aveludada. Era de plástico.

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7 de junho de 2020

Engenho

Eis que em meio ao caos generalizado,
ao desgoverno com suas vergonhas expostas
a legitimarem a mediocridade de uma nação,
reabre-se a ferida jamais cicatrizada
na pele negra deste nosso corpo que se pensa branco
pela simples conveniência de ser assim.
Questão difícil de abordar porque quem diz
é a boca, porém quem sofre são as mãos, as pernas
as costas arcadas sob a chibata 2.0.
Os reclames da alforria voltam à moda
lançados por uma grife de nome inglês
da qual importamos tudo, desde os sonhos aos problemas
graves que sempre tivemos.
O incêndio lá distante
atiça um fogo de palha em nosso quintal
para quem sabe variar o assunto
na casa grande e nas mídias e nas redes virtuais
– evidente
a relevância do debate
como medida para esta nossa hemorragia interna,
para sanar um país delirante
que ama um espelho e não se vê.
Acontece que mesmo a laceração mais profunda
– estrutural, como se diz –
é rapidamente apropriada e tornada superfície,
as marcas que aparecem não são as cicatrizes,
são as hashtags e os feitores
que mais uma vez fazem girar a roda do engenho.
Quem de verdade se importa? Até que ponto se deixa afetar?
Chamarizes se alastram,
queimam campos de força recém-semeados
para subsistência nesta terra árida de tanta cal
ávida pela próxima colheita
de cana, açúcar e cachaça.

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6 de junho de 2020


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5 de junho de 2020

É madrugada.
Fiquei saudoso de teu cheiro e volumes,
e do disco de Tiganá que me apresentou.
Meu tempo foi suspenso.
Como esquecer uma noite que não tinha fim?
Essa melodia não é a mesma sem tua dança.
Acostumei a te ver, assim, de longe
da admiração que tenho, mantenho distância
pois meu corpo perto do teu fala apenas bobagens.
E não quero correr esse risco mais uma vez.
A semana foi de notícias pavorosas, e temi
temi, pois o horror está marcado na pele
temi, por tantas histórias de amor interrompidas
temi por aqueles que nunca tiveram seu tempo suspenso.
Temo, pois não basta lutar com um vírus, ou um verme,
preciso lutar com minha pele não adjetivada,
linha branca, farpada e autoritária
linha que sequestra futuros.
Quero você e os teus sentindo o sol
vivos, para compartilharmos um outro sonho.

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1 de junho de 2020


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27 de maio de 2020

Sinto alguma culpa por gostar de estar em casa; de todo modo, duvido que a maioria das pessoas circulasse tanto quanto lamenta esta impossibilidade momentânea e conforta-me pensar que uma nova normalidade logo se acomodará. Assim, ninguém precisará continuar a traçar planos dos inúmeros lugares que visitará quando enfim puder abandonar a quarentena; não sentirá remorso por não ter feito tudo o que poderia ter feito e não fez por qualquer motivo que fosse; não precisará cumprir as promessas movidas puramente pela ocasião; nem reclamará liberdade de qualquer tipo que já não estivesse devidamente programada. Por fim, sinto-me impelido a dizer que muitos pretendem sair à rua como se, para isso, bastasse colocar uma roupinha decente, destrancar a porta e se lançar às vitrines. Sair à rua é na verdade algo bem mais complexo, algo que talvez quase ninguém tenha feito ou o faça apenas raramente; é preciso implicação: despir a moral, abandonar a parte dura de si e exercitar a apreciação dos demais; é preciso tropeçar, dar de cara com o inesperado, surpreender-se com o que existe de singular no mundo. Há uma grave exigência nesse gesto, que talvez o faça político, caso se consiga de fato realizá-lo. Do contrário, deixar o confinamento da pandemia será apenas voltar aos confinamentos de sempre – de costumes, de classes, de gêneros etc. –, os quais só trazem algum conforto porque fomos por toda a vida amestrados a consumi-los e com eles viver razoavelmente bem.

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26 de maio de 2020

Vou contar uma história....
Sabe aquela semente do passado?
Plantada e bem cuidada?
Pois sou um dos rumos dessa transformação, da escuridão para a luz dos dias, o crescimento do movimento artístico, feminista, do movimento hippie, do LGBTQ+ e do anarquista. 
Carrego comigo a semente dessas lutas cheias de pressão e ocupação dos espaços.
Lembro com o meu corpo das conquistas sociais, de expressão, econômicas e sexuais.
Muita luta para se manter fiel ao que se acredita
Que cor você vê nisso tudo? 
Em quem você vota?
Quantos pássaros tem dentro de você? 
Sua terra está pronta para morrer?
São tantas cores que pulsam 
e mais uma vez a arte presente para que isso aconteça e estejamos claras para o futuro da nossa cabeça 
Consciente de que não é qualquer palavra, um sorriso fascista na tela ou uma mentira mal contada 
que faz com que agente esqueça.
Eu mergulho e volto com mais oxigênio
Pego uma pedra no fundo e faço junto construir um novo terreno
Desintoxicando esse absurdo 
Alimentando com libertários frutos 

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25 de maio de 2020


Você que respira o tempo

Posiciono as palavras para mantermos as florestas vivas
Sementes estabelecendo contato com folhas
Navegando no Oxigênio dialogado com a atmosfera
No ritmo quase zero de poluição, destruição, explosão
Ar para a nação
do negro azul da mata se ouve o canto mágico do íntimo isolamento
a flor de cor rara
o rio que é parente e reflete nossa cara
a experiência de viver sem estar em extinção
O olhar atento do macaco bebendo água
o imaginário que cria uma paisagem viva
feito rupestre,
grava a imagem com sangue
desenha a cosmovisão no futuro de sua nutrição
Festejando nenhuma mensagem de amor sem resposta
De povos originários aumentando sua população com sua memória
Da floresta diversa energizando a dinâmica dos corações e
poetizando a história
Da nossa casa terra
Bem preservada, em glória

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19 de maio de 2020


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14 de maio de 2020

Impossibilidade de ajuste das distâncias 

Hoje sonhei, sonhei três sonhos diferentes noite adentro e que me levaram casa afora. 
E porque sonhei lindamente, não queria viver o dia de hoje. Tive medo, medo do abismo que separa o que no mundo onírico é possível do que no mundo real tem sido improvável. As distâncias estão sempre em questão recentemente. A distância mínima estabelecida pela OMS, a distância ditada por uma estranha dança nos supermercados, a distância de nossos familiares e amigos. O isolamento estabelecido nos obriga a sentir as distâncias. Não há a justa distância tão sonhada pelo Roland Barthes, um ajuste tácito para uma boa convivialidade. Há apenas o autoritarismo das distâncias que se atualiza a cada novo pronunciamento dos governantes diante dos avanços numéricos produzido pela proliferação viral. Mas a distância da qual me referia inicialmente não é a distância medida em metros, quilômetros ou unidades de medida que estamos aprendendo a nos acostumar: marcações nos chãos de farmácias, nas filas dos bancos, fitas de isolamento nos balcões dos estabelecimentos considerados serviços essenciais. A distância que mais me assusta é aquela que impossibilita encarnarmos experiências. Àquela que nos lança a divagações fantásticas, àquelas que nos transportam para mundos imaginários (o que inclusive nos possibilitam suportar o existente e projetar futuros) mas que nem sempre nos devolve algum senso de realidade. Estive incomodada com o meu medo de não querer sair do sonho e retomar a rotina de um dia qualquer nesses tempos de pandemia. Um dia qualquer em que ser quarta ou domingo faz pouca diferença ou ainda, ser manhã ou noite pouco muda. Dias em que, modulados por encontros apenas na tela, parece retrocedermos à época em que a terra era plana. Achatada, aflijo-me em reduzirmos os encontros anteriormente calorosos a uma adaptação forçada de nos vermos em gride das telas, cada um se mantendo em seu quadrado, mutilando nossos corpos e reduzindo-os a um plano pensante, cerebral, comunicacional, daqueles habilitados pela articulação discursiva. Quero volumes, cheiros, sensações. Devolvam-me a possibilidade de partilhar o suor de um dia de trabalho, o odor de uma fornada recém saída na padaria, de não cair no metrô só porque outros corpos me sustentam, espremida, por favor, quero sentir enjôo no cinema daquele cheiro de pipoca com manteiga da pessoa ao meu lado ou dividir uma mesa de bar, jogar conversa fora até que as portas baixem. 

ENCARNAR AFETOS, COM-TATO, SENTIR EXPERIÊNCIAS! 

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12 de maio de 2020


...partilhas possíveis, alegrias improváveis, incertezas e efemeridades, alimento para a alma. Nutrir e sustentar no tempo os afetos em meio a pandemia!

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11 de maio de 2020

Hora do Brasil

Dias atrás, à janela, cantamos parabéns para celebrar o aniversário da Melissa, minha vizinha do andar de cima, que completou dois aninhos de idade. Dias, anos, já não tenho certeza; tudo flutua numa espécie de vazio sem marcas ou diferenciação. Todo dia é o mesmo, dois meses se passaram, seriam dez? Uma funcionária da portaria do condomínio se contaminou, fiz as contas, isso foi há vinte dias, o vírus sobrevive até setenta e duas horas em superfícies plásticas ou metálicas, isso significa duzentos e cinquenta e nove mil segundos. Aguardo três vezes o elevador, que sempre chega ocupado, três dias para descer à portaria e retirar a encomenda que ainda não chegou. Aguardo um tantinho mais, sem problemas, tenho compromisso não. Parece que a pandemia durará até o final do ano, até que se postergue outra vez a quarentena, sessentena, oitentena. Corro atrás da ilusão, permaneço sempre atrás. Fazem testes de vacina em humanos do Reino Unido. Unido! Deve chegar ao mercado anteontem. Alguém duvida que formará aglomeração? Fiz aniversário no último sábado. Dois aninhos. Decidi ficar mais velho apenas quando puder cantar parabéns a mim mesmo, sobrevivente. O vírus não sobrevive porque não morre nem vive, não é um ser, é um código genético tão virtual quanto os de computador; como alguns desavisados têm a audácia de afirmar que nasceu na China? Como podem existir tantos funerais? A humanidade nasceu na África, faleceu na Páscoa, Dia das Mães, feriado de Natal, tudo emendado agora. Como ter certeza de alguma coisa? Meu relógio de pulso permanece na gaveta da escrivaninha que herdei de uma tia que ainda não morreu, seus ponteiros giram no sentido contrário. Foi em mil novecentos e sessenta e quatro que crianças fardadas desfilaram em blindados, buzinaram em porta de hospitais, hastearam bandeiras coloridas e exigiram que os pobres voltassem ao trabalho. Ouço mamãe bater com colher de pau na panela, convocando-me para o almoço; a mesma colher com que me bate quando desacato suas autoridades. Os vizinhos cantam na janela. Um hino. De louvor. Desculpe, já é meia-noite, preciso voltar aos meus pesadelos.

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8 de maio de 2020

Terapia intensiva

Por que falar agora (ou nunca)
ou num momento qualquer
suspender a voz, as tintas, o tônus
– o que temos, se nada resta
tão pouco que se torna impossível
“sobre”viver entre
residências
desistências
imobilidades
de corpos tão fragilizados, oscilantes, suspirados
como as pausas nas chamadas de vídeo
com seus espectros de aspecto pacato
absorvidos pela iluminação artificial das telas de LED.

Como é possível estabelecer conexão
à fria luz de maio
meia estação, relação entrecortada por 
tudo que falha e só faz escancarar a ruína
abismal, escara de um estado de inexistência
falência múltipla de órgãos públicos
quando lá do alto
do planalto berra-se:
e daí?

De seu leito
há quem sinta que é possível ainda
falar porque é preciso
com a voz, as tintas, o ímpeto derradeiro
dar a ver e a ouvir os aflitos
a quem tal violência disparada a esmo
atinge o âmago como uma bala
nem tão perdida assim porque sempre 
fere o mais desprotegido
a existência mínima que só resta
falar e resistir, pois é fundamental
jamais calar diante das ordens de assassínio
e desaparecimento imemorável.

Enquanto houver voz, ouvirá vida.

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8 de maio de 2020


Tédio com T bem grande pra você

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2 de maio de 2020

Aumentam os números lá, diminuem os números aqui.
Perdem a consciência por lá, e ganham consciência  aqui.
Morrem por lá, renascem aqui.
Gritam por lá, se calam aqui.

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28 de abril de 2020

Encontro moedas na rua porque tenho sorte – ao menos é o que dizem as pessoas que não olham para baixo. Dia desses eu aguardava numa fila de mercadinho, que antes de tudo requer imaginação, dada a distância entre um cliente e o seguinte. Foi curioso porque a meu lado, dois metros para lá, um sujeito parou com uma garrafa de água na mão, e no mesmo instante outro se posicionou atrás de mim, também a dois metros, ocultado pela gôndola de produtos de limpeza. Eles não se viam, e ambos se imaginavam na sequência da fila. Quis avisá-los do engano. Quem me dera levantar a voz, romper a mordaça. Não pude. Em vez disso abaixei a cabeça mais uma vez, em pesar pela vitalidade que tem se esgotado na vala comum, coberta por terra seca de lágrimas. Comprei mantimentos, provisões – antes chamadas bananas, queijo, um pé de alface, meia dúzia de batatas, um pacote de macarrão –, e demorei para guardá-las nas sacolas. Não demorei muito, isso é certo, apenas um tanto a mais do que o suficiente para o segundo na fila avançar e me ameaçar com a sua proximidade. O homem com a garrafa de água teve preferência, não sei como foi a negociação. Com dinheiro em mãos ele logo pegou o troco e me ultrapassou, e sua pressa deixou cair uma moeda na calçada. Ouvi o barulho. Ei, disse eu, espontaneamente. Sua moeda! Ele se virou, já lá adiante, gesticulou qualquer coisa sem jeito e continuou seu caminho. Era uma moeda de 25 centavos. Soube assim que 25 centavos não valem o risco de voltar e pisar o chão que eu pisava, ali onde falei alto, mesmo de máscara. Assim como esta minha constatação na calçada do mercadinho também não vale nada, é somente mais um número que não dá conta do montante perdido a cada nova contagem oficial.

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27 de abril de 2020


Poética Manual do Medo

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26 de abril de 2020

Estamos na quarentena, mas eu estou na rua, na Vila Madalena. Eu estranho, pois as ruas estão cheias e as pessoas estão agindo normalmente. Encontro com a minha irmã, está carregando meu sobrinho. Ela olha para mim com cara de assustada e começa a justificar que só está passeando com o Davi, repete isso várias vezes, afirma e reafirma. Continuo a andar, mais alguém conhecido! A Ju. Ela vê a minha cara de quem não está entendendo nada e me explica que agora as pessoas podem sair da quarentena aos finais de semana, para não ficarem loucas. Está perto da hora do almoço, combinamos de comer juntas. Mas a Ju tem que pegar um negócio em uma loja e já me encontra. Como eu não gosto de ficar esperando resolvo entrar em um shopping, vou para a parte das crianças, onde tem um lugar com uma piscina coberta de ondas. Nossa, como é gostoso nadar, ser levada pelas ondas, sentir a energia da água, ficar boiando. Tem algumas crianças aqui comigo, alguns são meus alunos. Nos divertimos bastante juntos. Perco a noção do tempo e ao perceber isso fico preocupada com o almoço com a Ju. Saio da piscina e vou onde guardei as minhas roupas, busco o meu relógio. Olho as horas. Olho as horas novamente. Vejo os números mas não sei que horas são. Olho de novo. É um relógio digital, vejo a sequência de números mas não consigo traduzir que horas são. O Edu, namorado da Ju, aparece e me pergunta que horas são. Olho de novo o relógio. Nada. Falo para ele que não sei que horas são. Mas não ligo muito para isso. Resolvo voltar para a piscina, perto da porta as crianças estão indo embora, o Gabriel, meu aluno, me fala que o homem disse que vai fechar em dez minutos. Mesmo assim eu entro, penso que vai ser bom ficar sozinha um pouco, boiando, relaxando. Quando piso na água, as luzes se apagam. Começo a ouvir um barulho de água escoando por algum ralo. Estão esvaziando a piscina. Me troco no escuro e, quando vou sair, não consigo. Mexo a maçaneta, mas a porta não abre. É uma fechadura eletrônica e, como desligaram a luz, não abre mais. Estou presa. Acordo.

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24 de abril de 2020

Ainda aprendo, com dificuldade e alguma curiosidade, esses sutis gestos de horror que dominaram o espaço entre mim e o outro. Se antes tal meio parecia esvaziado, agora acolhe a coreografia da tragédia que escapa à cena e se realiza no hall do condomínio, na calçada, nos corredores do mercadinho, onde cabe apenas uma pessoa por vez: devo olhar antes de avançar, ter certeza de que estarei só enquanto o outro, que também precisa fazer seu bolo, titubeia, dá um passo atrás, tenta não violar meu cordão imaginário de isolamento. E se por acaso erro o passo a dança desanda, como o creme que pretendia confeitar com este açúcar, essência, desejo. Os humores, vencidos, talham. A paranoia fermenta admiravelmente, por sua vez. Confunde-se com o cuidado comigo e com meus semelhantes, assassinos potenciais. Isolamento tornou-se atitude social. Cárcere privado eletivo. Os paradoxos não se eximem de aparecer para um café amargo. Dia desses, no trabalho, anunciou-se: ao manter distância você mostra ao colega que se importa com a vida dele. Não fosse terrível, seria divertido. Não fosse atroz, não sei. O tempo dirá. Espero. Mesmo os gestos mais estranhos, aos poucos, tornam-se banais. Há duas semanas eu diminuía o ritmo na calçada para observar meu reflexo mascarado nos vidros dos carros estacionados. Ontem fui beber água e a derramei por todo esse mesmo filtro que me cobre a boca, nariz, corpo, família, futuro.

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21 de abril de 2020

O tempo
Unidade de terapia intensiva

Talvez o que mais caracterize o ambiente da UTI seja
um certo estado de suspensão...
uma suspensão do tempo...
um susto, um suspiro
parece não ter fim...
um aperto, uma realocação das urgências e prioridades...

Um estado de aguardo enquanto as forças do corpo estão em combate,
Tentando fazer as regulações necessárias para restabelecer/estabilizar os parâmetros vitais.

Há o tempo que...
para os que não estão sedados,
não passa...

Para os que estão sedados,
nem sentem o tempo passar...

Para os familiares,
é tempo demais...

Para os profissionais,
o tempo parece o mesmo sempre...

O tempo para os que aguardam o transplante,
é longo...

Para aquele que vai para a cirurgia,
deseja que o tempo não chegue nunca...

Para aqueles em estado terminal,
o tempo parece que chegará para sempre.

Os tempos ganham larguras, espessuras, asperezas, angústias, profundidades e intensidades a todos que visitam à terapia intensiva.

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18 de abril de 2020


"me deixa ir pra fora para ver as coisas mais de perto por favor!"

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17 de abril de 2020


Sol maior
Mi menor

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15 de abril de 2020

Guardadas

as distâncias na fila
os vazios no horizonte
as câmeras no céu
os olhos na tela
os pássaros no aquário
as crianças no tédio
os pijamas no escritório
os silêncios no elevador
os medos no outro
as angústias no sofá
os amores na gaveta
as invisibilidades no catre
os monólogos na mudez
os ímpetos na despensa
as revoluções na panela
os sonhos no freezer
as vidas no microscópio
os desejos no exterior
as quebras na saída
as mordaças no app
os disfarces na rua
as esperanças na prateleira
os gelos na mão
os próximos na cova
as imprecisões no número
as imagens no obscuro
as sintonias no impossível
as violências no pronunciamento
bem embaladas e guardadas as
indevidas proporções.

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14 de abril de 2020

Falo com muitas pessoas ao telefone hoje. Cansei-me das mensagens de whatsapp. Não quero aguardar as respostas, quero ter um mínimo de contato simultâneo, sentir alguma reciprocidade; presença partilhada no mesmo instante me parece algo indispensável para seguir aceitando que ainda existo como humana. Não tão fundida ou confundida com as máquinas, os dispositivos eletrônicos que nos "conectam" em velocidades cada vez maiores que, no entanto, nem sempre garantem proximidade. Quero ouvir vozes. Vozes amigas, oscilações sonoras, de intensidade, frequência, volume e tom. Vocalização dos nós na garganta, sentir com os ouvidos a vibração dolorida do momento, o riso gélido, a lágrima que escorre, o peito apertado, a falta de ar misturados com intervalos habitados por gargalhadas de uma piada qualquer ou de algum humor possível também de ser habitado. Não aguento aguardar enquanto o outro me grava um áudio, visualizar o tempo sinalizado pela seguinte inscrição "gravando áudio...". Não quero sentir o desvio dos olhares que não se cruzam nessa nossa tela de cada dia. Sofro, me debato, grito, urro. Não quero viver assim. Ao telefone hoje, ouço vozes. Ouço sobre mortes que chegam cada vez mais perto, sinto a tristeza na voz que não sai, das palavras que faltam, das saudades que não cessam. Ouço a irritação das gerações que estão tendo que aprender na marra a lidar com esses dispositivos que não nasceram acoplados a seus corpos. Ouço por outro lado, aqueles pequeninos que partilham seus afazeres, mesmo sem muitas palavras, cada um de sua casa, brincando com seus brinquedos. Ouço também sobre o tempo que não passa, do desejo de pegar a bengala para dar um rolê, da reclusão sem sol, do período de engorda e das terríveis noites em que os olhos não se apagam. Ouço a minha avó de longe, contemplo-a de costas, faço um mínimo de movimentação para que não me ouça, para que não venha em minha direção. Troco com um amigo sobre o que será de nossos filhos, que invenções são possíveis para manter alguma saúde. Brincamos sobre as drogas que nós adultos acessamos para produzir algum estado de relaxamento e nos indagamos sobre quais poderiam ser a deles. Em meio a tudo isso ouço a locução de números que não param de subir, as mortes que não param de aumentar, ouço a caixa registradora da contabilidade humana a todo vapor, ouço estatísticas de todos os tipos, por bairro, por estado, por país. Nenhuma conta fecha. Ouço boatos, soluções mágicas, especulações de que medidas serão mais ou menos efetivas, o que diz a ciência, o que impõe o jogo político.
Ouço aquela respiração mediada por máquinas ventilatórias da UTI que não aguentei trabalhar nem por míseros três meses. Ouço a indignação daqueles que de seus sofás apontam o dedo para os que pelas ruas permanecem, ouço o julgo alheio insensíveis e inflexíveis na compreensão do outro. Ouço vozes, ainda prefiro ouvi-las, mesmo que ensurdecedoras, essas vozes contam, cantam, ganguejam, falham, trepidam e também se esgotam. Pela voz ouço portas, escancaram-se janelas. Ouço o arrombamento do grito humano, ouço a respiração irregular, arrítmica, sintomática mas que, apesar de tudo, ainda são ruídos do que é estar vivo.

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 a tênue linha da respiração: sopro maquínico


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14 de abril de 2020

o céu de abril - o céu se abriu
estamos em casa sob cada teto
mas não esqueçamos que  estamos sob o mesmo céu!




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9 de abril de 2020


A todxs amigxs profissionais de saúde, que corajosamente, e por vezes também, covardemente, saem de suas casas todos os dias e vão assumir esses nossos postos de trabalho, agradeço pelas partilhas, pelas trocas, esse cuidado mútuo que oferecemos, de maneira improvisada, do jeito possível, marcando alguma proximidade, mesmo sendo tão difíceis algumas distâncias nesse momento. Essa rede tecida dia-a-dia, com pequenos gestos, presenças possíveis, sustentando a possibilidade de seguirmos sustentando esse momento com tantas fragilidades. Gratidão, companheirxs nessa travessia!

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8 de abril de 2020


Do alto das minhas janelas

Vejo nada e o nada me devolve o olhar, incorporado 
nos demais moradores de apartamento alocados
diante de mim, atrás, ao redor, de esguelha
eles me olham do alto das suas janelas
não porque têm interesse, veja bem
na verdade eles não têm
nada melhor para ver, sou
o que lhes resta, o seu nada e
ao mesmo tempo tudo
o que resta
neste fim de mundo sem fim
nas alturas intermináveis, as horas
enquanto lá embaixo corre a imaginação
– o risco, o medo, o estranhamento
eles habitam algum lugar antes conhecido
onde estive sem saber, sem me dar
conta do que podia via a ser
hoje sei? espero
enquanto certa invisibilidade traiçoeira
aguarda, permeia, infiltra
não se deve agir como se nada estivesse acontecendo
e o nada acontece, de fato
realiza-se diante de mim
eu o vejo através das minhas janelas translúcidas
tão evidente que lá está
em algum lugar – quem duvida? daí
pretendo ver sem incomodar, ouso
ser visto para estar vivo, ser
reconhecido como um corpo
são – não apenas uma ameaça
eu que nunca liguei para isso, que preferi
passar despercebido, hoje me incomodo
com aquele que se oculta
nas cortinas para me evitar e evitar
cruzar os olhos comigo, mesmo
a uma distância segura, maior do que
os dois metros
os doze andares
as quatro semanas
a meio caminho do céu.

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6 de abril de 2020


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5 de abril de 2020

Minilápis de cor

Você estava prestes a sair para visitar sua avó
que não quer receber ninguém por causa do vírus enquanto
eu escrevia sentado à mesa do jantar
na verdade eu revisava um texto recém-esboçado enquanto
a caneta repousava à minha frente
é do papai?, você quis saber
e eu respondi que sim, afastando a caneta
num gesto de violência impensado, justificado
por uma pena de ouro e sistema de recarga a pistão caríssimos, pois
logo você voltou
com um conjunto de quatro minilápis de cor e um livrinho
de colorir, explicando que o encontrara em sua mochila
deixou comigo um minilápis
e antes de tomar o elevador com sua mãe me disse:
trabalha um pouquinho, trabalha?
Você adormeceu no meu colo
horas depois, quando eu ainda não cogitava dormir
por causa do trabalho atrasado em casa, tantos desejos programados
levantei do sofá com um livro na mão
recolhi o controle da TV, que como sempre
sua mãe largara em qualquer lugar
fui guardá-lo em um dos quatro buracos
do objeto que usamos para guardar controles remotos
– não sei como chama, tampouco temos tantos controles assim
eis que me deparo com apenas um buraco desocupado
os outros três continham, cada um:
– um minilápis de cor amarelo
– um minilápis de cor azul
– um minilápis de cor vermelho.
Sorri porque notei
não apenas que lá estavam eles
mas também porque percebi, só então
que você havia deixado comigo o minilápis
verde, sua cor favorita.

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31 de março de 2020


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28 de março de 2020 

Ir ao mercado em um sábado à tarde
não é mais como ir ao mercado num sábado à tarde

Há uma movimentação tácita, um des-contato e improvisação dos corpos que se deslocam por entre as gôndolas de forma coordenada. Não é uma dança, embora haja uma precisão entre as pessoas de manter a distância mínima recomendada. Um movimentar-se desconfiado, calculando os passos alheios e ajustando as passadas próprias. Muita tensão e desconfiança, nenhum contato visual direto. Todos à espreita, atentos à aproximação do potencial inimigo. Mascarado ou não, o outro se tornou ameaça, seja ele quem for. Não há olho no olho, houve também esta habilidade rapidamente adquirida: desviar o olhar, não se haver com avistar o que no outro pode haver de demasiadamente humano. 

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24 de março de 2020